Fabiana Moraes

Chacota com Deltan é linguagem da extrema direita e não deveria orientar comunicação do governo Lula

Logo após a cassação do deputado federal do Podemos, o governo federal fez paródia nas redes para enaltecer os resultados obtidos nos primeiros meses.

Ilustração: Intercept Brasil

Ilustração: Intercept Brasil

Há pelo menos cinco anos ouvimos com frequência que, na peleja braba das redes digitais, centro e principalmente esquerda saem sempre apanhando da extrema-direita. É desta o modo de fazer que traz mais resultados: engajamento, interesse, viralização, poder de pautar o debate público etc. Sei que não preciso me alongar muito aqui, afinal passamos os últimos quatro anos imersos em um coquetel noticioso feito de cloroquina, voto impresso e “o que é golden shower?”.

Corta para maio de 2023 e o perfil oficial Governo do Brasil no Twitter divulga um powerpoint mostrando, em um círculo, os feitos do Governo Lula em 137 dias. Do desenho, saem diversas setas que apontam para investimentos em educação e cultura, programa Mais Médicos, queda da inflação etc. O anúncio foi publicado logo após a cassação do mandato de Deltan Dallagnol, deputado federal pelo Podemos (PR) diplomado em fevereiro de 2023.  O ex-procurador, que esteve à frente da Operação Lava Jato, nos brindou em 2016 com um tosco e inesquecível powerpoint no qual “provava” que o hoje presidente Lula estava à frente de um vasto esquema de corrupção.

Peguei a pipoca e sentei para ouvir e ler as análises sobre a paródia feita pelo governo federal. Na postagem no Twitter, uma série de comentários apontava o deboche e reiterava o prazer de dezenas de eleitores e eleitoras provocado pela perda do mandato de Dallagnol após a decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral. Outros, incluindo muita gente que paga todo mês a Elon Musk para manter o selinho azul de “verificado”, criticavam duramente e falavam de vingança. Nos veículos jornalísticos, apareceram títulos como “Governo Lula zomba da cassação de Deltan em tuíte com powerpoint” ou “Um dia depois de TSE cassar Deltan,  governo o ironiza com PowerPoint”. Vale lembrar que, já no momento de sua publicização em 2016, a arte criada pelo Ministério Público do Paraná gerou uma infinidade de memes, algo que foi reacendido após a  decisão do TSE, como mostrou o Núcleo Jornalismo.

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O ex-procurador também comentou o caso, classificando-o como “revanchismo” e, em outra brilhante prova de seu baixo teto cognitivo/interpretativo,  chamou a paródia de “fake”, uma vez que o powerpoint do governo federal não tinha o mesmo número de setas que o original (!!!). Aliás, peço licença aqui para um  pequeno comentário: é muito impressionante como tantos jornalistas deram, sem tensionamentos, destaque e musculatura a uma figura tão limitada, cujo repertório linguístico não avança para além de palavras como “corrupção”, “Deus”, “verdade” e, claro “fake”  – embora o mesmo não possa ser dito sobre sua perspicácia para ganhar dinheiro, como mostrou este Intercept.

Retomemos: mais do que achar certa ou errada a postagem feita pela equipe do governo, há uma questão central que  emerge com esse caso.  Afinal, como se ganha a incessante disputa digital tão central para a própria sobrevivência da democracia? O que propõem analistas e colegas jornalistas que tanto criticam as esquerdas por apanharem nas redes quanto torcem o nariz para a recente ironia da comunicação oficial do governo?  Essas questões apareceram com força já na disputa presidencial no ano passado, quando o PT  “janonizou o sistema” e passou a ter uma postura de mais ataque nas redes sociais, tendo como um dos principais articuladores o deputado federal André Janones, do Avante (MG).  

Muita gente criticou a falta de “temperança” da comunicação virtual da campanha para eleger o presidente: teve maçonaria, canibalismo vitimando indígenas, Collor como ministro da Previdência com Bolsonaro etc. O fato é que, fagocitando as estratégias do concorrente, Lula saiu eleito.

Autora do livro O mundo do avesso – Verdade e política na era digital, a pesquisadora Letícia Cesarino entende que o tuíte postado por um canal oficial da presidência é, de fato, controverso, mas que seu significado vai para além de uma leitura sobre eficácia ou o certo/errado. No ambiente cibernético, diz ela, a postagem se coloca de maneira mais fragmentada do que na mídia pré-digital, esta muito mais linear. É dentro desse caleidoscópio, e de modo extremamente rápido e ruidoso, que os sentidos da comunicação vão se dar.

“É algo que a gente vê  na extrema direita e no bolsonarismo também. É o que alguns autores chamam de ambiente de testagem total. É ele que caracteriza o espaço cibernético, onde você tem o feedback imediato – a questão da eficácia e da verdade muitas vezes vêm depois, e não antes. O que quero dizer com isso? Que muito provavelmente a secretaria de comunicação e outros atores do governo vão fazer o que o bolsonarismo também fazia: você solta uma peça, solta um enunciado, e depois vê a resposta do público.” 

A também professora da Universidade Federal de Santa Catarina, que vai integrar a equipe do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania comandado por Silvio Almeida, aponta que essa estratégia pode ser até mesmo intuitiva, como são as próprias redes. Significa dizer que é “no quente” que as análises sobre o poder de um post como o do powerpoint paródico vão se dar, muito a partir da medição de reações não somente da esquerda, centro e extrema-direita, mas da própria administração federal.

“Pelo que vi, entre pessoas do campo governista, teve quem achasse adequado, teve gente que viu uma linha sendo cruzada.  Na minha opinião pessoal, eles [Secom] forçaram um pouco. Não acho grave, não vai queimar secretaria ou o governo para sempre, mas eu esperaria um aprendizado nesse sentido. Não é que uma peça desse tipo não deva circular, mas o canal oficial do governo brasileiro é o melhor canal para isso? Eu diria que não.”

Nesse sentido, a pesquisadora percebe, analisando as formas de procedimento da extrema-direita/Bolsonaro nas redes, uma separação entre o tipo de discurso vocalizado pelos canais institucionais e o discurso troll vindo de perfis de seguidores, parlamentares etc. Enquanto os primeiros mantiveram um tom mais brando, mais tecnocrático, mostrando estatísticas e realizações do governo, os seguintes investiram nas postagens debochadas, irônicas, justamente aquelas que recebem mais visibilidade e tração. 

Afinal, como se ganha a incessante disputa digital tão central para a própria sobrevivência da democracia?

“Temos uma visão de que Bolsonaro e seus seguidores são a mesma coisa  e igualmente toscos, mas há essa separação e complementaridade entre esses dois gêneros nas redes. Por incrível que pareça, boa parte dos seguidores de Bolsonaro ainda acham que foi um governo técnico. O tuíte da Secom foi controverso porque cruzou essa linha entre gêneros ao usar um canal oficial do governo para veicular uma mensagem com estética jocosa, irônica.”

Nesse lugar de dupla comunicação –  sóbrios canais institucionais e ruidosas redes sociais de apoiadores –  um perfil específico precisa ser iluminado: o do próprio ex-presidente, o derrotado Jair Bolsonaro. Afinal, foi nele que estas duas estratégias de ação se amalgamaram, foi ali que acompanhamos durante anos o mais alto posto do comando executivo federal publicizando ataques, desinformação e até um vídeo com hienas (representando imprensa, partidos, STF) atacando um leão (representando o marido de Michele). 

Aqui importa menos que as contas nas redes sociais do presidente tenham sido administradas por seu filho Carlos: o fato é que se tratavam de perfis de um chefe de estado eleito pelo voto popular, contas oficiais que eram repercutidas por milhões de pessoas e vocalizadas pela imprensa nacional e internacional. 

Autora, ao lado de Paolo Demuru, do livro Um bufão no poder – ensaios sociossemióticos, a pesquisadora Yvana Fechine, da UFPE, analisou o conteúdo destes perfis, em especial o Facebook de Bolsonaro. O estudo, como não poderia deixar de ser, também levou em conta as estratégias de esvaziamento dos canais oficiais de comunicação –  inclusive os do próprio governo federal, que passaram a ser somente espécies de coadjuvantes das publicações do ex-presidente.

“Por isso é relevante pensar nesse momento como Bolsonaro lidava com os canais institucionais de comunicação da presidência e como Lula pretende usar ou está usando estes mesmos canais. O primeiro esvaziou deliberadamente a comunicação oficial para fazer uma não institucional. Era a comunicação do presidente, mas não necessariamente da presidência”, comenta Fechine, citando o famigerado “cercadinho” e as lives semanais de Bolsonaro como estratégias de desinstitucionalização e, portanto, de reconstrução de imagem do chefe do executivo.

“Lembro que, na época na qual estava analisando esse jogo de papéis, no qual ora Bolsonaro se assumia como presidente, ora não, o próprio governo federal divulgou uma notícia com uma manchete bem emblemática, informando que o presidente não tinha intenção de criticar o carnaval [no início de março de 2019, JB publicou um vídeo de um homem semi-nu enquanto um bloco de rua passava]. Era um meio de comunicação da presidência desmentindo um comunicado – ou uma postura – do próprio presidente.” Esse fenômeno foi visto ainda em outros momentos, como no caso das discussões sobre a reforma da Previdência Social: ali, foi montado um plano de ação institucional para limitar as falas do mandatário. 

Foi assim, sendo tanto chefe de estado quanto troll, quebrando liturgias, fazendo parte do “sistema” enquanto criticava o mesmo, que JB conseguiu cultivar a imagem de outsider, embora envergasse a faixa presidencial. Significa dizer que Bolsonaro entrava e saia do lugar de  estadista a depender de estar ou não em apuros políticos – ou somente quando o cargo exigia. “Mas Lula, por sua vez, não se porta como um estadista – ele é um estadista. E diferentemente do governo anterior, não me parece que há intenção de esvaziamento dos canais oficiais de comunicação”, complementou Yvana Fechine.

É justamente por isso que, para ela, o uso de um canal institucional para fazer uma provocação não contribui para a imagem de estadista que o governo precisa publicizar. Isso porque, tomando a paródia do powerpoint como exemplo, pode-se antes de tudo transformar a “trollagem” em mero ato revanchista, algo que será insuflado não só nas redes de extrema-direita, mas que também repercute em outra parcela do eleitorado, mais centrista, que votou não exatamente em Lula, mas contra Bolsonaro e como forma de tirá-lo da presidência.

Há outro ponto extremamente interessante apontado pela pesquisadora e professora da UFPE: a reativação de uma memória que a paródia da apresentação de Dallagnol traz. “Você lembra que Lula foi acusado, preso, chamado de ladrão. Muita gente com um discurso anti-Bolsonaro, incluindo a própria imprensa,  continua de alguma maneira trabalhando nessa chave. Trazer o powerpoint é trazer essa memória, é falar desse Lula acusado, objeto de processo. É como se dizia na época da campanha presidencial, quando discutia-se se deveríamos esperar que Bolsonaro pautasse o debate: se você não quer que prestem atenção no elefante, não fale do elefante. E, para mim, trazer essa peça de volta nos traz todo um conjunto de imagens que circularam no auge do lavajatismo.”

Polarização e esvaziamento do debate

Como se vê, o tom a ser adotado em um embate digital que está longe de acontecer somente nas eleições não é fácil: ele pode ser ativado para a catarse de apoiadores ao mesmo tempo que afasta possíveis aliados. Ao mesmo tempo, sabe-se há tempos que achaques e desinformação circulam muito mais que postagens mais equilibradas e com conteúdo verídico, como mostrou uma pesquisa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Saber como jogar esse jogo sem atirar nos próprios pés é a grande questão.

A pesquisadora Raquel Recuero, da Universidade Federal de Pelotas e Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estuda há muito as dinâmicas das redes sociais digitais – em um artigo em parceria com mais dois autores, por exemplo, ela se debruçou nas hashtags #bolsolão e #marqueteirosdojair para estudar a polarização nas eleições presidenciais de 2018.  Para ela, existem estratégias que, apesar de viralizarem, terminam gerando desgastes.

“Neste caso em específico [a paródia com o powerpoint de Dallagnol], não acho que é uma estratégia da extrema direita, mas uma estratégia do jogo político atual. O humor tem muito poder, mas acaba jogando para quem já torce para o time. A questão é: para quem se quer falar? A comunicação quer falar com quem já é apoiador ou quer conquistar novos apoiadores? Esse tipo de estratégia, embora muito eficaz com apoiadores, porque inflama e viraliza entre seu público, acaba polarizando e afastando possíveis audiências novas”, diz.

‘O tuíte da Secom foi controverso porque cruzou essa linha entre gêneros ao usar um canal oficial do governo para veicular uma mensagem com estética jocosa, irônica.’

Recuero entende que as formas de atuação do jogo político atual – e mesmo da esfera pública – terminam gerando mais polarização, um péssimo cenário para a democracia brasileira. “Há um esvaziamento do debate, porque há uma desqualificação do adversário de cara. No entanto, esse parece ser o caminho mesmo dos discursos políticos atuais.”

Letícia Cesarino chama atenção para o perigo da própria ruína de uma ideia de esquerda caso a mesma se utilize do modus operandi da extrema-direita sem fazer ajustes fundamentais no discurso e estratégias. Isso porque a divisão, diz, não pode ser um mote principal –  esta é em si uma política de direita. “Você pode até ter um conteúdo de esquerda, mas na prática, se você investe nisso como política de comunicação, vai virar uma força de direita. Vamos ter um populismo de exclusão ou um populismo inclusivo? O de direita vem de uma tradição mais excludente, é a negação do mainstream, da democracia liberal. O de centro-esquerda é mais inclusivo, quer trazer setores não incluídos da sociedade em uma democracia que já existe. Lula já trabalhou em outros governos com esse código amigo-inimigo, elites-povo. Podia fazer um discurso mais moderado para um e outro mais inflamado para o outro. Antes da internet, era mais fácil separar, mas agora não há mais controle entre emissor e receptor da mensagem. É o que a chamamos na literatura de colapso de contextos.” 

Yvana Fechine segue a mesma perspectiva, e diz que o esvaziamento dos canais institucionais para dar lugar a um conteúdo diverso e ácido não pode fazer parte do jogo. “Como você vai esperar que a esquerda adote esse tipo de estratégia? Mesmo no bolsonarismo, a trollagem, de modo geral, era feita oficiosamente, sobretudo por um conjunto de influencers e com apoio de uma imprensa fascista. Era pelas redes sociais, a partir de um conjunto de perfis, que produziam esse discurso da provocação e da desinformação. Então é muito arriscado que isso possa vir de um canal institucional. E é também difícil imaginar que isso possa vir das esquerdas porque fere completamente um projeto ético que está associado às práticas democráticas. Acho que esse é um dilema que está posto.” 

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